DIFAL não pode ser exigido por falta de Lei Complementar

Janir Adir Moreira e Alessandra Camargos Moreira

              Em edição anterior tivemos a oportunidade de discorrer sobre a inexigibilidade da Diferença de Alíquota do ICMS, também conhecida por DIFAL,  para as empresas do Simples Nacional, devida nas aquisições de mercadorias e serviços de fornecedores estabelecidos em outras Unidades da Federação (Tema 517 - repercussão geral), sendo que o artigo encontra-se publicado no nosso site.

              O que nos motiva a voltar ao assunto é que, em um cenário bem mais amplo o STF fulminou a cobrança do Diferencial de Alíquota do ICMS (DIFAL), introduzida pela Emenda Constitucional (EC) 87/2015 e disciplinada pelo Convênio ICMS 93/2015, concernente às saídas de mercadorias e serviços com destino a consumidor final, não contribuinte do ICMS localizado em outros Estados, pela ausência de edição de Lei Complementar para disciplinar o mecanismo de compensação.    A discussão da matéria, que se estende também às empresas não optantes pelo Simples Nacional, se deu no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 5469 e do RE 1287019, com repercussão geral reconhecida (Tema 1093), finalizado em 24/02/2021. 

                  A tese fixada no julgamento do RE 1.287.019 (Tema 1093) foi a seguinte:


"A cobrança da diferença de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzida pela EC 87/15, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais."

                 Diante da decisão definitiva do STF sobre a matéria, entendemos importante  demonstrarmos  os seus efeitos e a extensão do impacto na vida empresarial, principalmente em decorrência da sua modulação decidida pelo Plenário, a saber:

Cláusula 9ª do Convênio 93/2015. ADI 5469

              A Cláusula Nona do Convênio 93/2015 tem a seguinte redação:

“Cláusula nona Aplicam-se as disposições deste convênio aos contribuintes optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional, instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em relação ao imposto devido à unidade federada de destino.”

             É de se esclarecer que na questão da exigência do DIFAL das empresas do Simples Nacional, ou seja, em relação a esta cláusula que incluiu tais empresas no regime do comércio eletrônico,  o Plenário do STF determinou que os efeitos da decisão se aplicam desde o dia 17/02/2016, ou seja, a data em que foi concedida a cautelar na referida ADI, cuja redação é a seguinte:

“Pelo exposto, concedo a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia da Cláusula Nona do Convênio ICMS 93/2015 editado pelo CONFAZ, até o julgamento final da ação. Comunique-se. Publique-se. A julgamento pelo Plenário”.

Cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª do Convênio 93/2015. ADI 5469

              As cláusulas do Convênio ICMS 93/2015 têm a seguinte redação:

“Cláusula primeira Nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada, devem ser observadas as disposições previstas neste convênio.

Cláusula segunda. Nas operações e prestações de serviço de que trata este convênio, o contribuinte que as realizar deve:
I - se remetente do bem:
a) utilizar a alíquota interna prevista na unidade federada de destino para calcular o ICMS total devido na operação;
b) utilizar a alíquota interestadual prevista para a operação, para o cálculo do imposto devido à unidade federada de origem;
c) recolher, para a unidade federada de destino, o imposto correspondente à diferença entre o imposto calculado na forma da alínea “a” e o calculado na forma da alínea “b”;
II - se prestador de serviço:
a) utilizar a alíquota interna prevista na unidade federada de destino para calcular o ICMS total devido na prestação;
b) utilizar a alíquota interestadual prevista para a prestação, para o cálculo do imposto devido à unidade federada de origem;
c) recolher, para a unidade federada de destino, o imposto correspondente à diferença entre o imposto calculado na forma da alínea “a” e o calculado na forma da alínea “b”.
§ 1º A base de cálculo do imposto de que tratam os incisos I e II do caput é única e corresponde ao valor da operação ou o preço do serviço, observado o disposto no § 1º do art. 13 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996.
§ 1º-A O ICMS devido ás unidades federadas de origem e destino deverão ser calculados por meio da aplicação das seguintes fórmulas:
ICMS origem = BC x ALQ inter
ICMS destino = [BC x ALQ intra] - ICMS origem
Onde:
BC = base de cálculo do imposto, observado o disposto no § 1º;
ALQ inter = alíquota interestadual aplicável à operação ou prestação;
ALQ intra = alíquota interna aplicável à operação ou prestação no Estado de destino.
§ 2º Considera-se unidade federada de destino do serviço de transporte aquela onde tenha fim a prestação.
§ 3º O recolhimento de que trata a alínea “c” do inciso II do caput não se aplica quando o transporte for efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem (cláusula CIF - Cost, Insurance and Freight).
§ 4º O adicional de até dois pontos percentuais na alíquota de ICMS aplicável às operações e prestações, nos termos previstos no art. 82, §1º, do ADCT da Constituição Federal, destinado ao financiamento dos fundos estaduais e distrital de combate à pobreza, é considerado para o cálculo do imposto, conforme disposto na alínea “a” dos incisos I e II, cujo recolhimento deve observar a legislação da respectiva unidade federada de destino.
§ 5º No cálculo do imposto devido à unidade federada de destino, o remetente deve calcular, separadamente, o imposto correspondente ao diferencial de alíquotas, por meio da aplicação sobre a respectiva base de cálculo de percentual correspondente:
I - à alíquota interna da unidade federada de destino sem considerar o adicional de até 2% (dois por cento);
II - ao adicional de até 2% (dois por cento).


Cláusula terceira O crédito relativo às operações e prestações anteriores deve ser deduzido do débito correspondente ao imposto devido à unidade federada de origem, observado o disposto nos arts. 19 e 20 da Lei Complementar nº 87/96.

Cláusula sexta O contribuinte do imposto de que trata a alínea “c” dos incisos I e II da cláusula segunda, situado na unidade federada de origem, deve observar a legislação da unidade federada de destino do bem ou serviço.
Parágrafo único. As unidades federadas de destino podem dispensar o contribuinte de obrigações acessórias, exceto a emissão de documento fiscal.”


              Como visto, as cláusulas acima mencionadas estabelecem os critérios para o recolhimento do Diferencial de Alíquotas do ICMS – DIFAL (Cláusula segunda I “c” e II “c”),  aplicáveis aos contribuintes que promoverem saídas de bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra Unidade da Federação.   Segundo as Cláusulas mencionadas, o ICMS será recolhido da seguinte forma:
a) – ICMS total devido na operação e/ou prestação: Alíquota interna do Estado de destino;
b) – Recolhimento ao Estado de origem: ICMS correspondente à alíquota interestadual; e
c) – Recolhimento ao Estado de Destino: O ICMS correspondente ao DIFAL, assim entendido, a diferença entre o ICMS total devido na operação e/ou prestação (alíquota interna do Estado de Destino) e o ICMS recolhido ao Estado de Origem (calculado pela alíquota interestadual)

              A essência das disposições introduzidas pela EC 87/2015 e reguladas pelas cláusulas do Convênio 93/2015 é que os referidos dispositivos estabelecem a adoção da alíquota interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado.  A regra prevê que caberá ao Estado do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual do ICMS.

              No julgamento conjunto o STF declarou inconstitucional a  exigência da DIFAL disciplinada pelas Cláusulas 1ª, 2ª. 3ª e  6ª do Convenio 93/2015, também conhecida como Diferencial de Alíquotas de ICMS da EC 87/15,  uma vez que para a sua validação deveria ser regulada por Lei Complementar, todavia, modulou a decisão para produzir efeitos a partir de 01/01/2022.

              As normas disciplinadas pelas Cláusulas do Convênio ICMS 93/2015, dispondo sobre os procedimentos a serem observados nas operações e nas prestações que destinam bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS localizado em outra Unidade da Federação e que a pretexto de regulamentar a EC 87/2015 acabou impactando o comércio de bens e serviços nesta modalidade, realizado principalmente através do e-commerce, foram objeto de questionamento na ADI nº 5469, enquanto que no RE 1.287.019 (repercussão geral reconhecida – Tema 1093), a sua interposição foi contra acórdão do TJDF no sentido de que a cobrança da DIFAL não se condiciona à regulamentação por Lei Complementar.

Da extensão dos efeitos da decisão

              É de se considerar ainda que a decisão proferida em ADI,  quando declara a inconstitucionalidade de uma lei, como neste caso, tem eficácia genérica e obrigatória, com impactos sobre todos os contribuintes, gerando ainda efeito vinculante aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública, com efeitos retroativos ao início de sua vigência, salvo na hipótese de modulação dos efeitos por decisão de dois terços dos Ministros, para outro momento, como ocorreu no caso da decisão objeto desta nossa análise.

Dos votos proferidos:

              A ADI 5469 foi julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade formal das cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª do Convênio ICMS 93/2015, enquanto que no RE 1.287.019 o Plenário assentou a inconstitucionalidade de cobrança em operação interestadual envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte do DIFAL, por não estar disciplinada em Lei Complementar, valendo destacar em relação a cada um dos Ministros, o seguinte:

Marco Aurélio:  Segundo o Ministro relator, “os Estados e o Distrito Federal, ao disciplinarem a matéria por meio de convênio no Confaz, usurparam a competência da União, a quem cabe editar norma geral nacional sobre o tema. Para o ministro, elementos essenciais do imposto não podem ser disciplinados por meio de convênio.
 

Dias Toffoli: O Ministro pontuou que,  antes da regulamentação por lei complementar, os Estados e o DF não podem efetivar a cobrança de ICMS correspondente ao diferencial de alíquotas nas operações ou prestações interestaduais com consumidor não contribuinte do tributo.
 

Edson Fachin: O Ministro evidenciou que a equiparação do regime de aplicação de alíquotas interestaduais do ICMS para consumidores finais, localizados em outros Estados, não dispensa lei complementar.  Para ele, o convênio impugnado inova no aspecto pessoal e quantitativo do fato gerador do ICMS. Finalizou afirmando que "a cobrança de diferencial de alíquotas na forma do referido convênio por empresas optantes pelos Simples Nacional viola a reserva de lei complementar." 

As Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia alinharam-se ao entendimento pela imprescindibilidade da lei complementar. Por fim, assentaram a invalidade da cobrança do diferencial de alíquota do ICMS, ante a ausência de lei complementar, na forma do convênio 93/15, em operação interestadual, totalizando assim 6 votos pelas inconstitucionalidades.
 

Ministro Nunes Marques: Abriu divergência sustentando a desnecessidade de Lei Complementar para exigir o DIFAL, tendo sido acompanhado integralmente pelo Ministro Gilmar Mendes.
 

Ministro Alexandre de Moraes: Acompanhou a divergência em relação ao RE 1.287.019,  julgou a ADI parcialmente procedente e foi seguido pelos Ministros Ricardo Lewandowski,  Luiz Fuz e Dias Toffoli, que entenderam ser inconstitucional apenas a Cláusula 9ª do Convênio 93/2015, que por sua vez incluiu as empresas do Simples Nacional no regime do DIFAL e teve a medida cautelar deferida em 17/02/2016.
 

Modulação de efeitos

              Conforme já mencionamos anteriormente, por nove votos a dois, foi aprovada a modulação dos efeitos para que a decisão, nos dois processos produza efeitos a partir de 01/01/2022, ou seja, as cláusulas continuam em vigência até dezembro de 2021, exceto em relação à cláusula 9ª (que incluiu as empresas optantes pelo Simples Nacional no regime disciplinado pelas cláusulas anteriores, cujos efeitos retroagem a 17/02/2016, ou seja, na data do deferimento da medida cautelar na ADI 5464.

Modulação dos efeitos não alcança as ações judiciais em andamento

              Evidenciamos finalmente que as ações judiciais ajuizadas anteriormente à data do julgamento (24/02/2021) foram expressamente afastadas da modulação aprovada.   Registre-se que o Supremo Tribunal Federal foi fiel à orientação pacífica de seu Plenário, no sentido de que modulação de efeitos de decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade de leis e de atos normativos não alcança demandas ajuizadas antes da prolação das referidas decisões.

             Temos que a modulação dos efeitos das decisões do STF no exercício do controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC) encontra fundamento no art. 27 da Lei 9.868/1999, cujo objetivo foi a criação de instrumento que possibilitasse promover o equilíbrio os efeitos de declaração de nulidade nas hipóteses em que ela pudesse gerar situação de grave insegurança jurídica, criar lacuna normativa ou ofender algum outro princípio constitucional.  A jurisprudência do STF vem caminhando no sentido da inaplicação da modulação dos efeitos ou de sua utilização de maneira prudente e parcimoniosa, principalmente nos casos de declaração de inconstitucionalidade da norma instituidora de tributos ou que determine a sua majoração.

              Isto, contudo, não afasta a possibilidade das discussões quanto à sua aplicação, uma vez que até mesmo para a delimitação da existência de insegurança jurídica ou relevante interesse social, pois são conceitos abstratos, de baixíssima densidade normativa, padecem de anemia semântica e admitem múltiplas interpretações.

          No caso objeto de nossas considerações, pelo menos, restou evidenciado que a decisão foi por maioria de nove votos alicerçados em justificada fundamentação, quando se lançou mão da técnica argumentativa da ponderação entre princípios e regras constitucionais para fixar os efeitos a partir do exercício seguinte àquele em que a decisão foi proferida.  Com isto, a conclusão é que embora declarada a inconstitucionalidade da cobrança do DIFAL nas saídas de bens, mercadorias e serviços para não contribuintes estabelecidos em outra unidade federativa, por falta de regulação em lei complementar, a mesma foi mantida até o dia 31/12/2021, tendo como consequência a materialização de exigência sem amparo constitucional até a referida data. Até lá, certamente o Congresso Nacional terá tempo e condições de editar a Lei Complementar e assim dar o foro de legalidade à continuidade da cobrança.

          A modulação dos efeitos, não atinge as empresas optantes pelo Simples Nacional e desta forma a decisão tem aplicação retroativa a 17/02/2016 (data da concessão da liminar na ADI 5469).  Assim, as empresas do Simples Nacional continuam desobrigadas do recolhimento do referido diferencial de alíquotas a favor dos Estados de destino nas hipóteses de promoverem saídas de mercadorias, bens e serviços a não contribuintes estabelecidos fora do âmbito jurisdicional da unidade federativa onde estejam instaladas.   Da mesma forma, a modulação não alcança as hipóteses em que as empresas já tenham ações em andamento, ou seja, ajuizadas anteriormente à decisão.

Do DIFAL devido pelas empresas do Simples Nacional correspondente às entradas oriundas de outros Estados:

              O DIFAL correspondente às entradas de mercadorias, bens e serviços oriundos de fornecedores estabelecidos em outros Estados, devido pelas empresas tributadas pela sistemática do Simples Nacional, continua em discussão no Supremo Tribunal Federal.

           Esta discussão está relacionada à compatibilidade do sistema de recolhimento simplificado e unificado com a exigência do referido Diferencial de alíquotas, sendo que o STF reconheceu a repercussão geral no julgamento (Tema 517 – RE 970.821/RS), estando o processo atualmente com vistas para o Ministro Gilmar Mendes.

              Ressaltamos finalmente que a ADI 5464, em que o STF julgou pela inconstitucionalidade da Cláusula nona do Convênio ICMS 93/2015, por falta de Lei Complementar, trata de outro fato gerador de ICMS, instituído pela Emenda Constitucional 87/2015, que, alterando os incisos VII e VIII, do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, autorizou que “nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual.

             Assim, concluímos que as empresas do Simples Nacional estão dispensadas do recolhimento do DIFAL nas saídas de mercadorias para consumidores finais não contribuintes do ICMS, por força da decisão proferida na ADI 5464, retroativamente a 17/02/2016.  

              Por outro lado, as referidas empresas tributadas na sistemática do Simples Nacional continuam obrigadas ao recolhimento do DIFAL incidente sobre as entradas de bens, mercadorias e serviços nas aquisições feitas de contribuintes estabelecidos em outros Estados, ressalvados os casos em as mesmas tenham ajuizado ações para a discussão da matéria frente ao Poder Judiciário e tenham obtido liminares ou tutelas nas respectivas ações.    Caso tais empresas optem pelo ajuizamento de ações para contestar os recolhimentos, poderão requerer liminar em Mandado de Segurança ou ainda depositar os valores em juízo e terão a suspensão de sua exigibilidade.  Ao final, se forem vitoriosas, levantarão os depósitos e se a decisão for contrária os mesmos serão convertidos em renda do Estado, sem multas ou quaisquer acréscimos.    

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